Começo
pela véspera atemporal dessa história.
Samba.
Sempre gostei de samba. É... Sempre? Bem, não é bem assim. Sempre
é um tempo constante sem início nem fim. Esse tempo começa quando
não lembramos o início. Tempo suspenso na recordação. O que
importa é a certeza da ancestralidade desse gosto em mim. Agora, a
título de recorte dentro da constante atualidade do tempo, essa
influência desinfluente pode ser datada no final da década de 1980.
Antes de sair para o trabalho, minha mãe deixava o rádio ligado na
Rádio Tropical. SÓ TOCAVA SAMBA independente do subgênero. Mas um
estilo me tocava mais: o tal do pagode chamado de “raiz”. Do
menos rebuscado aos mais conceituados. E digo uma coisa: o samba mais
comercial dessa época ainda é melhor do que os “populares” das
décadas seguintes. Comecei a memorizar os nomes e os sambas de
bambas antigos e atuais. E não cito nenhum nome, pois “malandro”
não se compromete, só “mané” não se toca. Outro tipo de samba
é o de enredo, o qual tem me apetecido menos por suas questões
mercadológicas.
No
Rio do qual sou posse, apreciamos escola de samba de coração como
time de futebol. Pelo menos era a visão que eu, criança, tinha do
mundo naquela época. Como num passe de mágica, me descobri
Beija-Flor de Nilópolis. A pequena ave que
baila estática no ar. Esse sentimento me ficou bastante
sensível à pele a partir de 1989. Com um enredo sociocrítico,
“Ratos e urubus, larguem minha fantasia”, a escola Nilopolitana
ficara em segundo lugar. Festejei muito esse enredo e os “Todo
mundo nu” (1990) e “Araxá, lugar alto onde primeiro se avista o
sol” (1999), dividido com “Chico da Mangueira”, também belo.
Em 1998, foi a primeira vez que pisei o chão da Deusa da Passarela.
Uma quarta-feira chuvosa. Pensava em me “esbaldar” de cerva! Pura
ilusão. Tomei um balde de gelo (outro problema, “gelo” lembra
cerveja). Bem, bebi nada além de chuva! Como a diretoria não
contava com o título, não teve gelo pra galera. E eu estava duro
que nem um coco, possuindo apenas o dinheiro da passagem de ida,
contando com a sorte do “calote” na volta de ônibus. E o único
líquido que absorvi foi chuva. Porém, o paraíso hospitaleiro da
quadra superlotada foi maravilhoso.
Indo
para o tempo cronológico dessa história.
Sexta-feira,
noite abafada. Dia de vestir branco, dia de Obatalá. Último dia da semana de viagens geográficas a
serviço do ensino em torno da língua portuguesa. A semana inteira,
desde segunda, aula aqui, aula ali, aula acolá, aula alhures. Imagine
o cansaço, sensação de alívio e depois aquele chope gelado.
Colégio Alfa, final de expediente. Intervalo anterior aos dois
últimos tempos de aula na turma de Pré-vestibular. Literatura.
Momento sagrado de breve descanso. Na sala dos docentes,
repousava com cafezinho e biscoito o historiador Lázaro,
que de Ramos nada tinha, era mais para Bonsucesso, ou melhor,
Lázaro de Austin e adjacências baixadianas. Nesse momento de paz e
esparramado no sofá, surgiu o convite para integrar uma parceria na
disputa do samba enredo da escola Inocentes de Belford Roxo. Confesso
que fiquei feliz, ansioso e intrigado. Lázaro já conhecia meu
gosto, conhecimento e pesquisas sobre samba, mas não tinha essa
canja para o de enredo. Como ele queria terminar a letra do samba,
que teve sua primeira parte composta por Diamante, parceiro que
conheceria no domingo, marcamos de beber depois da aula. Na saída,
fomos para o Bistrô Brasil do Marcelo Negão, onde a
especialidade era o cremoso chopp encantador
de poesias.
No Bistrô
Conexão Brasil, Lázaro me apresenta o professor Zé Antônio,
integrante da parceria. Lá conversamos sobre as estratégias dos
integrantes da parceria, dos valores a serem investidos, do dindim que
a escola poderia pagar aos vencedores e, principalmente, na alegria
da concorrência. “Água pra prover a vida” era o enredo. E,
obviamente, numa conversa sobre samba, só chope para saciar a sede.
No bar também estavam mais quatro amigos, os quais
libertinamente convidei para beberem juntos e integrarem a parceria.
Mas não aceitaram. Paulinho José estava duro e sairia nas cuícas
da Portela; Hilário estava numa parceria na Vila Isabel; Bira
da Vila caçava patrocínio para o cd “Canto da Baixada”;
e Flavinho Neguinho tinha de se dedicar ao Casarti (Casa do
Artista Independente). Beberam um chope conosco e saíram para sei lá
no mundo.
Na
quinta caldereta de chope, o calor noturno ainda era intenso, as
gargantas sedentas, as canetas afiadas e os papéis, antes pálidos, agora rabiscados. Zé Antônio fala sobre o primeiro samba: “Pelo telefone” (1916), de
Donga. Foi minha deixa, eu já tinha escutado Nelson
Sargento e Monarco (bibliotecas vivas), em momentos diferentes,
dizerem que a galera do Estácio já “batia” um “samba de
partido alto” diferente do “Pelo telefone”, embora seja o
primeiro do gênero a ganhar certidão de nascimento. Além disso, já
tinha lido referências sobre o samba em obras literárias, como
em Os Sertões, de Euclides da Cunha, e obras do renomado
pesquisador Nei Lopes. Logo, minha bagagem de leitura era uma mala
sem alça.
Na
décima caldereta de Brahma bebida, o garçom perguntava: “Mais
três Chopes?” E respondíamos dando ok, levantando a taça e
cantando Orlando Silva: “Chopp da Brahma é o primeiro / Chopp da
Brahma é o primeiro / De garrafa ou de barril”. E concordávamos
que o de barril era melhor do que o de garrafa. Agora o assunto era
mais humorístico independente da seriedade do mesmo. Nesse momento
“poetílico”, já tínhamos escrito o restante da letra do samba.
Entretanto,
lá pela décima sexta caldereta, e de um tempo fora do relógio,
ocorre um caso inusitado, uma insanidade etílica, diria. Não foi o
pedido de um exótico tira-gosto, mas uma declaração do Lázaro.
Nessa hora, Dudu, sócio no Bistrô, já ria de orelha a orelha. Como
o show no telão acabara, o garçom fora trocá-lo. Mas
perceba o quilate da responsa! Era um dvd que eu tinha
levado com músicas cantadas por Candeia, Aniceto do Império,
Cartola, João Nogueira, Nelson Cavaquinho, Zé Keti, Dona Ivone
Lara, Clementina de Jesus, Monarco, Nei Lopes, Fundo de Quintal, Zeca
Pagodinho, Almir Guineto, Reinaldo, Dunga, Toninho Gerais, Camunguelo, Leci Brandão, Bira da
Vila etc etc e tal. A última música tocada tinha sido do menestrel
Luiz Carlos da Vila, cantando “O sonho não acabou” (A chama
não se apagou nem se apagará / És luz de eterno fulgor, Candeia /
O tempo que o samba viveu / O sonho não vai acabar / E ninguém irá
esquecer Candeia). Beleza até então. O novo dvd já estava
tocando. Não percebemos bem do que se tratava, a conversa estava
animada. É nesse momento que Lázaro vira para gente e aponta o
telão onde era exibido o show. “Isso é que é pagode de
raiz!” Não decifrei bem o que tocava. Mas, curiosamente, eu e Zé
olhamos para o telão. Era exibido um show do grupo Jeito Moleque.
Era a deixa... ou a gota que faltava. “Dudu, a conta! Já
bebemos demais por hoje! A poética já está comprometida!”. Rimos
muito, e nosso amigo pediu desculpas pela possessão de espírito sem
luz que o fez proferir tal afirmação doidivanas.
Domingo,
nove dias depois, ansiedade no tato, caipirinha no paladar e Samba
Social Clube na audição. Era o dia de conhecer a quadra da escola,
os outros parceiros e os possíveis adversários. Era o início dos
estratagemas e da letra campeã. As apresentações dos sambas
concorrentes seriam a partir das 20h, marcamos às 19h, e eu cheguei
às 18h30. O ponto de encontro seria o quiosque do Biricutico, que
ficava em frente à quadra. Botei o endereço no GPS e pronto. “Aqui
é o quiosque do seu Biricutico? Por favor, uma cerva bem gelada!”
“Deixa que eu levo na mesa!” Sentei à mesa e esperei os
comparsas. Havia pouca movimentação na rua e ao redor da quadra.
Vi, no máximo, protestantes indo, provavelmente, para suas igrejas.
A praça era de um ambiente mal iluminado no lusco-fusco fronteiriço
do início da noite. Além dos transeuntes evangélicos, poucas
pessoas eram circunvizinhas ao quiosque.
Enquanto
aguardava os amigos, vi personalidades um tanto caricatas nos outros
botecos próximos e na fila da bilheteria da escola de samba. Pensei
comigo: Se a galera que veio curtir e torcer é assim, não sei que
festa vou encontrar por aqui. No trailer ao lado da quadra, sentado
numa mesa estava um pai de santo de cabeleira estilo Lionel Richie.
Ele vestia-se todo de branco, apoiava-se em uma bengala e usava anéis
prateados em todos os dedos. Ele andava devagar e com dificuldade
dramática. Mas que raios esse senhor alquebrado de quase dois metros
de altura veio fazer aqui? Poderia ser um bicheiro, se não fossem o
anel de búzios, o colar de Ogum e as quatro mulheres que o
acompanhavam. Senhoras de ojás coloridos na cabeça. Duas delas
andavam com dificuldade de tão obesas. A outra que também me chamou
atenção foi a mais magra delas, que, a olhos nu, deveria
pesar uns 40 quilos sobre as muletas em que se debruçava. Não sei
quem pesava mais: as muletas ou a senhora. E a quarta era a mais
velha de colar marrom, uma vovó de guelê branco na cabeça, que,
além de cobrir os também brancos cabelos, usava um pano da costa
ora usado como echarpe. No Rato Pelado (estava escrito na propaganda
em cima do bar), estavam já lotadas as mesas em questão de 15
minutos após minha chegada. E eram pessoas de porte físico bem
robusto ou bem magras, mal encaradas, algumas barrigudas,
mulheres de shortinhos apertados e curtos, gays, a maioria negra. E
falavam alto, aliás, gritavam afetuosamente entre eles. E tomam
engradados e engradados de cerveja. Sozinho e tímido, comecei a me
sentir amuado, meio amedrontado, pois as pessoas não pareciam
receptivas. Não me viam. E o calor? Putz! “Seu Biricutico, mais uma, por
favor”. Enfim, 19h em ponto, chegou a parceria: Lázaro, Zé Antônio, Diamante, Alê Boladão e Figueiroa. Só
gente de bem. Os outros não puderam vir. Pedimos mais duas cervejas.
Lázaro me apesenta aos demais e ensaiamos o samba. Afinados,
entramos na quadra. Eu, o estranho no ninho da “pomba da paz”.
Adentramos
a quadra. Havia um número ínfimo ao que se espera num dia de
apresentação de sambas. Poucas mesas preenchidas. Empolgação
zero. Poxa, já eram 20 horas. Enfim... um balde de gelo! Vamos beber
e esperar. Lá pelas 21h a bateria iniciou os trabalhos. E eu só
pensava que teria de levantar antes do galo cantar na segunda para ir
lecionar. Confesso que não estava mais empolgado. As pessoas estavam
apáticas, cabisbaixas, moribundas, sem água ou refrigerante ou
cerveja (!!!) em suas mesas. Eu olhava para mesa daquele pai de santo
e sua família sentados num tédio ancestral. Eu pensava: o que vim
fazer nesse lugar? As pessoas deveriam ser torcedoras da Beija-flor,
Grande Rio, Portela, Mangueira, GRES Quilombo ou Unidos da Ponte, menos da
Inocentes. Só pode ser. Dominado pelo transe das conversas de meus
amigos, não dei conta do quanto a quadra foi sendo tomada por um
mundaréu de gente. Como não me recordava de ter visto fileiras
cheias, achava que a quadra permaneceria às moscas. Contudo,
uma transformação.
A
bateria que rufava fervorosamente funcionou como os tambores que vão
buscar quem mora longe. E foi contagiante ouvir o samba em homenagem
a Leonel Brizola: “Canta cidade do amor / do coração Inocentes /
pra saudar o rei do povo / faz a alegria dessa gente”. E as pessoas
entraram em transe mediúnico. Começaram a sambar e cantar
inebriadas como se fossem a própria pomba da paz, símbolo da
escola. Uns davam puladinhos de bode, como diria Candeia, outros pareciam
enceradeiras com suas pernas alucinadas. As passistas pareciam
sininhos voando no chão de pirlimpimpim. Belas, sensuais e do samba!
A inveja escorria pelas retinas por desejar ter as pernas elétricas
de 220 volts dos passistas, embora eu verdadeiramente prefira um
miudinho de velha guarda. Depois entoaram o samba em homenagem a
Ossanhin, a divindade botânica detentora da cura advinda pelas
folhas: “O meu coração é Inocentes / de Belford eu sou feliz / o
corpo são conduz a mente / eu sigo em frente vou na força da raiz.”
Se a cura não veio da floresta, ao menos veio pela samba. O pai de
santo alquebrado, que andava com dificuldade e apoiado em uma
bengala, sambava com vigor e maestria de um Delegado da vida. Mas
como assim? O suor escorria-lhe do rosto com alegria e era absorvido
pela toalhinha branca que descansava dependurada no ombro, onde se podia ler a palavra bordada "Oxalá". E as suas
filhas de santo. As duas senhoras gordas dançavam com a leveza e o
brilho de plumas e paetês. A de muletas parecia uma
porta-bandeira em mavioso glamour. E a vovozinha mocotona?
Ela sambava e cantava como as antigas pastoras do tempo áureo
dos ontológicos sambas. Onde estavam as pessoas "excêntricas" que
me intimidaram no início? No mesmo lugar. Agora tudo me era
familiar, eu era apaixonadamente um deles. Antes idiota à
Dostoiésvki, depois sambista à Paulo da Portela. O samba
tem o poder de mudar pontos de vista, de suprimir o prefixo do
preconceito, de desconstruir identidades cristalizadas, de permitir
alguém trocar sua medula óssea cultural. O samba me favorece a
olhar para mim mesmo a partir do outro, refletindo sobre os meus
privilégios sociais.
As
parcerias foram apresentadas, e os sambas começaram a ser entoados.
Nossa música ficou por última. Nos dois meses consecutivos de
concorrências, não havia samba mais cantado como o nosso. Nossa
letra era forte e promissora. Ficamos entre os três finalistas,
sendo o mais apoiado pelos funcionários da escola, bares vizinhos à
quadra e os descompromissados com as três parcerias
finalistas. Mas a verba que conseguíamos angariar não era
suficiente para levar uma torcida maior à quadra. Qualidade
latente, mas pecávamos na quantidade. Também não tínhamos o apoio
da diretoria nem da presidência, que cantarolava a letra de uma das concorrentes. Nem queríamos apoio de uma direção
que, em reuniões semanais, ridicularizava a produção poética dos
compositores da escola como se, por morarem em uma
localidade da Baixada Fluminense abandonada pelo poder
público (que não investe em saúde, em segurança e
em educação), não tivessem condições intelectuais. Pobres,
pretos, favelados, putas, gays, macumbeiros? Querida diretoria, Cartola e Dona
Ivone Lara, baluartes do samba, são exemplos de negros de origem
humilde e moradores do morro, e isso não os impediu de grandes
construções poéticas. As mãos das “minorias” não se
ridicularizam, mas a inferiorização de suas estruturas é reforçada
pelas mãos dos privilegiados que tudo levam, lembrando o pagode "mãos", de Carlos Senna e
Almir Guineto (a versão com Mano Brown é linda!). Estruturas sociais privilegiadas (ainda que
tenham nojinho) apropriam-se da “asquerosa” produção
cultural do povo. Transformam-na em proveito próprio. Depois
revendem-na ao povo para que o mesmo pague pelo “belo produto
final”. Os pobres produzem, as estruturas de poder tomam,
regularizam e vendem da forma mais conveniente de usufruo. O objetivo
desse simulacro é manter os desfavoráveis no seu devido lugar
social de dominação. Assim, elas se reproduzem vigorosas
e se perpetuam no poder. Como num estratagema preponderante para
vitória em tempos de guerra, os outros dois sambas foram
fundidos. Logo, creio que ficamos em segundo lugar. O saldo
foi positivo.
Defesa do samba. |
Porém,
ah, porém... quando subimos o palco, uma forte sensação estranha
tomou conta do meu espírito. Misto de medo, de choro contido, de
nervosismo, de ansiedade, de paixão, de representatividade. E aquela
multidão esperando, observando, inquisidores ou não, uns gritando,
ovacionando, sambando. E o coro popular encorpando nosso
refrão: “Água pra saciar a sede / Água pra prover a vida / A
Inocentes hoje conta com você / vamos juntos defender / nosso
planeta azul nessa avenida”. Foram muitos encontros, amizades
construídas, esperanças e respeitos compartilhados. O anúncio do
segundo lugar, o choro solto e frouxo. Mas a alegria do dever
realizado, da brincadeira, do esforço desprendido, da
amizade e dos amores abraçados na efusão de lágrimas, de suores e
de cerveja. E haja água para saciar nossa sede de vida. Água não
para purificar, lavar ou limpar no resgate de essência ou pureza,
mas no sentido de renovação, de transformação, de
ancestralidade.
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