Acredito que realidade deve ser aquela cena que ocorre todos os dias diante dos nossos olhos. Penso que realidade seja
a “naturalidade” do “transeunte” que observamos cotidianamente. Sendo assim, o
real é o que conhecemos porque é a rotina da retina. A escola é um dado real.
Saúde, Educação e Segurança também são dados da nossa realidade. O péssimo
funcionamento dessas três instâncias, o descaso dos políticos e a corrupção
também são dados da nossa realidade. São cotidianos; porém, inaceitáveis. São
sons absurdamente indesejados aos ouvidos. Roubos, assassinatos, estupros,
tráfico, corrupções são fatos dos poros. O suor também é normal. Tudo isso
acontece até quando estamos dormindo de olhos fechados, mas de ouvidos abertos.
O suor não cessa seu ofício nem nos dias mais frios.
Se algo só existe, se o
admitirmos como real, então deveríamos aceitar essas existências para podermos combatê-las.
O absurdo precisa ser aceito como audível para voltar, talvez, a ser silêncio. Muitos
indivíduos sentem prazer em incitar ações cruéis que, às minhas percepções
humanas, são anormais e nada naturais ao meu cotidiano mental. Contudo, real e
virtualmente, essa anormalidade é manchete corriqueira nos diversos veículos
como bancas e bocas: “Mata mesmo. Porrada! Tira sangue”. “Esse menor tem que ir
pra cadeia, porque matou um senhor de bem, de família na Lagoa”. “E os menores mortos pela
polícia, na Ilha? Ah, deveriam ser bandidos também”. “Repercussão midiática de
ciclista assassinado depende de sua posição socioeconômica”. “Na cadeia, mete todo
o cabo de vassoura no ânus desse estuprador!”. “Olha lá, levou um tirambaço de
douze na fuça! Compartilha no facebook. Manda o vídeo para o meu watshapp”. “Foi
estuprada? Também, olha a roupa dela. Dava até para ver o útero. Bem feito. Ela
pediu”. “Esse muleque já tem jeitinho estranho. Vai ser viado, quer ver?”. “Tem
que voltar a ditadura! Quem gosta de osso é cachorro”. “Sim à intervenção
milita? Mas na favela já ocorre”. “Dane-se; favela é criadouro de bandido pobre
e preto”. “Aids? É doença de viado. Já viu um hétero com AIDS? Detesto viado e
travesti. Por mim tudo tem que morrer”. “E preto: quem quer ser preto? Mulher
preta é pra comer. Os pretos são racistas com eles mesmos”. “Índio usando
computador? Onde fomos parar?”. “Sem-terra é tudo vagabundo”. “Pobre é
engraçado e confuso. Diz que tem nada. Quando dá uma enchente, diz que perdeu
tudo”. “Deveria existir uma lei para prender esses macumbeiros, adoradores de
satanás. Tá amarrado!”. “E esses crentes fundamentalistas? Abitolados, ex-tudo-de-ruim e enganados pelo
pastor salafrário”.
Falta de respeito? Falta de
compaixão à diferença? Anormalidades? Essa é a normalidade de nossa sociedade
em que indivíduos “moralistas”, ainda temendo abrir a própria boca para soltar
seus demônios, apoiam-se em representantes que abrem a caixa de brinquedos
sádicos de nosferatu. Não falo em Pandora, pois, coitada, os seres humanos causam
o pior. Ter medo de alma penada e de assombração ou de gente viva? Outra coisa:
por que sempre espírito padecendo em penitência ou causando terror aos vivos? O
mundo dos viventes é melhor do que o destino dos morrentes? Os espaços
fronteiriços são mais desconhecidos do que o outro lado da estrutura binária
(mundo dos vivos e mundo dos mortos). Os viventes, ainda que não compreendam nem
o seu lado, julgam sabiamente o lado dos mortos.
Foi assistindo a uma
comunicação sobre Literaturas Fantásticas que comecei a refletir sobre “realidade”.
Passei a pensá-la representada pelos acontecimentos prosaicos do dia a dia.
Assassinatos, preconceitos, discriminações, violências, corrupções, sexismo, voyeurismo,
inveja, cobiça, estupro, guerra. Um mundo binário, purista sem misturas e maniqueísta:
se não for do lado B, é a favor do A na luta contra aquele primeiro. Se não for
coxinha, é asinha (Mas ambos não são membros de uma mesma ave?). Vivemos num
mundo que nega abertamente os sorrateiros e imperceptíveis (???) diálogos que
ocorrem entre os lados. É dessa forma que somos normais e reais todos os dias. Somos
idiotas ou hipócritas. Melhor, somos um neologismo composto por aglutinação. A
sociabilidade de nossa humanidade habita nessas crueldades. Ou, logo, o meu
julgamento encontra-se errado. Mas quem sou eu para julgar? Apenas mais um
sadomasoquista a admirar a clava de poder às mãos de nem sei qual ser virtual.
Mas eu quero seguir a linha
da ruptura, para depois continuar. E quando algum acontecimento rompe com essa
normalidade de que falávamos? Sobrenatural? Subreal? Suprarreal? Fantástico? Maravilhoso?
Animísticio? Não, apenas temos essa tal realidade de fatos do cotidiano. O real
é o dia a dia. Real é o que ocorre com certa frequência. É então que percebemos
as intenções que se encontram por trás dos acontecimentos mais prosaicos
possíveis. Vivemos no palco da pantomima da galhofa. Concórdia ou discórdia.
Vamos à cena que foi rascunhada para o meu personagem nessa trama do cotidiano.
À noite de uma terça-feira
dessas, por volta das 19h22, estava na avenida Automóvel Clube, na Baixada. Pensava nos
minutos restantes para o findar do dia fatídico na epopeia de retorno à minha
Ítaca. Estacionar a nau no pequeno quintal, desembarcar em casa, a gruta do
Polifemo. Enfim, faltando uma curva para adentrar a rua de minha casa e
estacionar na garagem... Lá estava ele, o gigante Adamastor! Mas eu não sou
Vasco da Gama! Aliás, sou um simples flamenguista às asas de um Beija-Flor! De
alma e corpo exauridos, depois de um dia quente e de muito engarrafamento,
avisto o caminhão do meu vizinho, pela quarta vez (PELA QUARTA VEZ!!!!!) estacionado
à passagem em direção às Índias. Eu louco para dormir nos braços da deusa Vênus.
E Adamastor plantado ao portão da entrada de minha casa. Só a poesia para transgredir, embelezar e tornar leve a realidade..
Isso é normal? É natural? A
insistência na ocorrência é real. Das três ultimas, eu apenas havia tirado
fotos, para registrar o caso do vizinho impertinente. Porém, o processo judicial já estava sendo escrito. Dessa vez, vai que o caso acabasse
em delegacia. Não fui à sua casa, não o procurei, ele nem mora na minha rua.
Somos adultos o suficiente para entendermos as nossas atitudes equivocadas.
Aliás, por que adultos? Há muita responsabilidade em ser criança. Muitos lugares
e amigos para criar. Muita luta para manter o encantamento vivo, alimentando o
mundo. Entretanto, quase todas elas sucumbem a essa missão tão épica na que é transitar para o mundo adulto.
Dessa vez, o meu estimado
vizinho havia estacionado seu caminhão ocupando metade da entrada da garagem. Parei
o carro. Desliguei o carro. Fiquei pensando no carro. Saí do carro. Fechei o
carro. Dentes trincados. Bruxismo. Então me transformei! Incorporei o estresse
gerado nos engarrafamentos do dia eternamente quente (engarrafamento às 5h15, indo
para o trabalho; engarrafamento desde as 17h50, voltando para casa). Dizer que este
texto não é coeso é fácil. Difícil é encenar (ou escrever) meu papel à flor da
pele!
Ações repetitivas sem
nenhuma razão. Abri o portão e entrei. Voltei para rua. De novo, entrei no
quintal. Voltei para rua. Olhei em volta. acho que havia umas vizinhas no alto da rua.
Claro, fofoqueiras. O alerta mental se acendeu. Vou estacionar assim mesmo!
Voltei para o carro, liguei, dei ré e fui com tudo para a garagem. De forma
imaginativa para apenas uma criança, inclinei o carro para o lado esquerdo,
fazendo-o ficar sobre as duas rodas. Adentrei a garagem a 80 km! E olha
que não tinha bebido nenhuma! Olha, eu não sei como estacionei. Baixou o espírito do carro do Dick Vigarista, cheio de salamaleques, e trapaceou com a realidade metódica. Longe de ser sua inimiga, a magia somente deseja fraternidade já que também é filha da verdade. Depois de estacionar, voltei para rua.
Olhei as fofoqueiras. Adentrei minha casa bufando, espumando, tão cão raivoso
que nem enxerguei meu cachorro que, feliz com minha chegada, queria brincar
comigo. Passei direto por ele que pulava em minha perna, a qual não o sentia.
Estavam em casa minha filha, minha mãe e meu avô. Os três estavam em frenética
atividade iniciática de comilança. Meu avô se preparava para comer uma farofa
amarela da yoki. Minha filha tinha acabado de fazer pipoca de micro-ondas,
coincidentemente, da yoki. Minha mãe estava com asas de galinha a pôr no óleo
para fritar. Foi vendo essa orgia gastronômica que meu cérebro,
maquiavelicamente, agiu, sem eu pensar racionalmente. Peguei a farofa do meu
avô, que ficara gritando “não, minha farofa, minha farofa!!!”. Minha filha
tentou esconder a pipoca, mas peguei na mão grande: “Não, pai! Tá doido?”.
Minha mãe, a única afônica, nada entendeu, apenas deixou que eu pegasse três
asas cruas. Juntei os três elementos da poção mágica e fui para rua. Claro que
meu avô e minha sobrinha correram atrás de mim, para resgatarem seus petiscos.
Apenas minha mãe me seguiu curiosa. Então, na rua, comecei a jogar asas de
galinha, a farofa amarela e a pipoca sobre o caminhão. Rodei o caminhão fazendo
isso. Quando terminei, as fofoqueiras estavam estateladas. Meu avô, minha mãe e
minha filha, testemunhando tudo, apenas esperaram voltar para dentro de nosso
quintal para gargalharem horrores. Riam alto da galhofa da discórdia. Pronto!
Prato cheio! Frango, pipoca, farofa e gargalhadas. Só faltaram o charuto e o
marafo! Pantomima ideal para que os fundamentalistas, falsos moralistas de plantão, adorarem, pirarem e praguejarem. Tá amarrado!
Em poucos minutos, ouvíamos
os gritos na rua. “Meu deus, chama Adamastor!!! Manda o varão tirar o caminhão da
porta do inimigo! Ele botou um feitiço, uma macumba! Quebra esse mal e volte para o inimigo! Ele tá atazanado! Ele está com o diabo! Tá amarrado! Meu deus,
manda logo!” Confesso que fiquei muito nervoso. Não refleti sobre a minha
atitude. Agi normalmente? Fui real? Fui natural? E o meu interlocutor... como
foi sua leitura? Não me atentei aos percalços, às sanções. Sou baixo, franzino e
fraco. E, como sabemos no "Lusíadas", Adamastor é um gigante. Todavia, a energia do
redemoinho esteve todo tempo ao meu lado. Só sei que horas depois o caminhão não estava
mais, respeitosamente, estacionado em frente à garagem de minha casa. Salve a
divindade que fala todos os idiomas!
Como às 22h ainda é terça,
vou beber uma na rua. E, simulacro por simulacro, me deixa beber onde eu quiser. Por
isso, vou ao boteco na praça do Vilar. Lá, também serei amigo do dono da rua. não vão obstruir minha entrada. Ninguém sentará na minha cadeira, impedindo-me de relaxar. Estando à mesa, antes do primeiro gole, me lembro do colega Amílson. Colocarei uma chapinha
de garrafa no pé mesa, para que fiquemos equilibrados nesse final de grande
hora. Já é quase meia-noite. Nada melhor que um dia após o outro. O
mal ou bem sobrevivem de maneira maniqueísta ao olhar do oportunista. O poder é
simbólico e está nas mãos que não são as minhas. Talvez eu beba outras para relaxar mais.
Só adianto que, uma semana
após o causo, num dia qualquer outro, quando fui ao barbeiro de meu bairro, ouvi de uma
criança, que falou sem cerimônias perto de mim. Sentindo-se segura pelo apoio da mãe, ela lhe disse a seguinte frase aprendida em casa: “Mãe, olha o macumbeiro do diabo! Tá amarrado, né?” Enquanto isso, lá em casa, minha filha, a quem apelidei de “menina
de porcelana”, me chama de “Oscar Diggs, o mágico de Oz”. É... a dramaturgia da
loucura furiosa trouxe a normalidade da paz e da harmonia reais ao nosso
povoado. Graças a Deus, até hoje não encontrei mais nenhum carro estacionado à
entrada de minha garagem. A consciência humana é mais! Essa sim vence demanda! A poesia é mais! Essa sim tem poder! E que as bruxas fundamentalistas expulsas
de Oz não retornem tão cedo para nos atazanar.
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