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A FLOR DAS INTERCIRCINAÇÕES


Desde que aqui chegamos e habitamos a casa com espírito e corpo, duas grandes samambaias na varanda gritavam aos meus olhos. Não me recordo de ter visto nada semelhante antes. Samambaia com tronco. Tímidos e circinados sobre si mesmos, como um embrião, os ramos dessas samambaias foram se abrindo na cotidianidade de minha presença. Atentando-me cuidadosa e demoradamente, percebi que havia cipós também circinados, mas diferentes. A samambaia escondia uma trepadeira sendo suporte para que ela se mantivesse de pé. E, assim, elas cresciam juntas em direção à luz. Mas, pelo pouco que sei, as trepadeiras disputam com outras plantas e árvores luz solar, água e nutrientes do solo. É como se elas trepassem e sugassem as energias das árvores, que teriam aumentada a probabilidade de morrer. Uma hora, uma sufocará a outra. Enfim.
Entro no pub Zolá Bar, 2 boulevard de la Liberté, em Rennes. Sento-me no banco que estava ao balcão.
- Boa noite!
- Boa noite, meu amigo! O que você vai querer?
- Por favor, eu gostaria de uma bière pinte.
- Blonde?
- Sim.
- Ok.
Em menos de um minuto.
- Aqui, meu amigo!
- Merci.
- Desculpa, mas de onde você é?
Com sorriso de canto de boca, o sotaque denuncia:
- Sou brasileiro. Moro aqui em frente, na Cité Paul Ricoeur.
- Que maravilha! De frente! Adoro o Brasil. Calma aí...
Ele busca duas doses de cachaça de framboesa, que batizou de fleur du jardin.
Fleur du jardin
- Viva o Brasil! Santé!
- Vive la France!
- Bretanha!
Brindamos. Ele vai ao computador e coloca para o bar todo ouvir “bum bum tam tam”. Impossível não cair na gargalhada com tamanha simpatia na receptividade.
E continuei acomodado próximo ao caixa. Hora ou outra, uma brincadeira com o dono do bar. Eu já estava pela terceira pinte. Ainda havia torcedores, ou adeptos como diz o português André Bello, da equipe de Rennes, que havia jogado e vencido o Paris Saint-Germain. Enquanto eu observava o jogo de dardos, um grupo de três amigas se levanta da mesa, à direita, para pagar a conta.
- Não! Mas já vão? Não! Bebam mais uma! Está cedo! Ah, Ella, este é meu amigo brasileiro!
- Brasileiro, te apresento une copain ... Ella.
- Ça va?
- Ça va! Tu é brasileiro? Super! J’adore Chico Buarque! Conhece?
- Chico? É Claro!
- Jean, me dá mais uma chouffe!
- Ah, bom!!!
Bière chouffe.
- Meninas, vou ficar mais um pouco. Vou conversar com esse amigo brasileiro.
Foram saluts pra cá, coucous pra lá. Au revoir! Mas nada de abraço. Foi apenas uma rodada d belga chouffe, por sinal, muito boa, com um gnomo muito sugestivo. Apenas uma rodada, mas suficiente para conversamos sobre música brasileira. Era pura poesia. Ella, formada em História da Arte, se dizia apaixonada pela música brasileira. Em especial, aprecia as de Chico Buarque, por isso, pensa em um dia visitar minha terra.
- Eu encontrei o Chico por três ocasiões. Primeira, eu ainda estava cursando o bacharelado em Literaturas. De dia, disciplinas da Graduação, no Fundão. De noite, disciplinas da Licenciatura, na Praia Vermelha. Todo dia, entre uma aula e outra, estagiava na Biblioteca José de Alencar, na Letras. Isso sem contar com as aulas que lecionava em Madureira. Em uma quarta-feira, eu tinha ido assistir à palestra do escritor Pepetela, no Real Gabinete Português de Leitura. Fui com minha amiga Raquel Cristina. Na saída, tomamos um café e fomos andando até a Cinelândia, de onde ela foi para casa, e eu parei no Amarelinho para fazer hora. Eu ainda iria para a Praia Vermelha. Costumava chegar por volta das 18h e pouco. Parava no Sujinho, tomava um café na companhia do Damulakis. Depois, íamos para aula. No Amarelinho, bebi apenas um chope. Era o que dava naquele dia. Ainda havia outros gastos. Tempos de Durango Kid. Fui para a frente da Biblioteca Nacional saber qual era a exposição do momento. "Chico Buarque - O Tempo e o Artista". Que fascinante! Homenagem aos 60 anos do compositor. Fiquei tão encantado que esbarrei em um senhor vestido todo de branco e de chapéu panamá-hat. Virei para olhá-lo, um táxi o esperava. Era o próprio Chico Buarque em carne e osso! Não tive reação, apenas fiquei sentindo o ombro que tocou o corpo do meu ídolo. A segunda vez em que encontrei o Chico foi no bairro boêmio da Lapa, em uma noite de segunda-feira. Nessa noite, fui assistir ao Marcos Sacramento no antigo Bar Semente, que fica na rua Evaristo da Veiga. (Ano passado, eu quase fui morar a uns 15 metros dali, na rua Joaquim Silva, mas meu amigo Chico Só me dissuadiu da ideia, pois eu viveria todos os dias na boemia.) Esse encontro foi em 2015, outros tempos, onze anos depois. Eu já tinha terminado o mestrado. Na época da graduação, às quintas-feiras, ficávamos perto da janela ouvindo o som, pois o couvert e a cerveja eram caros. Melhor era comprar cerveja dos camelôs. Infelizmente, o Semente fechou. Você iria gostar muito. Ficava aos pés dos Arcos da Lapa. Lugar pequeno, mas muito gostoso. Inclusive, quando você for ao Brasil, vou te levar para conhecer a Teresa Cristina. Você não sabe quem é, mas vai saber. Ela é divina! Tem a Roberta Nistra a quem eu encho a paciência, pedindo para cantar “Ewa”. Então, fui lá ao Semente, na Lapa, para escutar o Marcos Sacramento, Yamandu Costa, Zé Paulo Becker e os músicos de Choro e Jazz. Adivinha quem apareceu e ainda deu canja?
- Oh lá lá! Pas croire! Diga mais!
- Pois acredite! Ele mesmo: Chico Buarque, em plena noite de segunda-feira. Chico Buarque ao violão, plateia a poucos centímetros. E tomando umas cervejas igual a gente. Ainda soltou um “é foda” descontraidamente antes de cantar, obviamente, uma canção sua. Que noite maravilhosa! A terceira ocasião foi a mais distante e breve. Meu amigo Pedorneles me convidou para assistir ao show da Mangueira. Chico se apresentou depois da magnífica Maria Bethânia, cantou umas três músicas. Mas foram mágicas.
- Mas que experiências fantásticas! Que inveja de você. Tomara que eu tenha essa mesma sorte quando for ao Brasil. Como vocês brasileiros devem se orgulhar de terem um artista como o Chico, principalmente em tempos tão sombrios...
- É, mas não é bem assim. Em 2015, houve um episódio muito chato no bairro do Leblon, quando o Chico saía de um restaurante. Um grupo de jovens fascistas, já alcoolizados, enquadraram-no na rua e começaram a ofendê-lo. Eles questionavam sobre seu posicionamento político. Ironizaram o Chico por possuir um apartamento em Paris. Só não o chamaram de santo: “Você é um merda”. Sabe, esse momento de intolerância já vinha mostrando sua face há anos, mas precisava de um fantoche representante desse ódio todo. Sabe, Ella, os cidadãos deveriam se posicionar a favor do respeito à democracia, à opinião do outro, à diversidade. Mas impera o sentimento de ódio. Complicado.
Incrédula e passada, Ella diz que chegou sua hora de partir.
- Aqui também não é simples. Mas, chérie, agora eu tenho que ir. Bisous.
Ela foi embora. Eu fiquei por mais 15 minutos. Antes de partir, mais um brinde com fleur du jardin. Mas dessa vez era com Ballantines Brasil, o que me abriu a gargalhada. Paguei a conta e me despedi. Atravessei a rua e adentrei o prédio. No elevador, fiquei pensando na ambiguidade do uso da palavra copain no trato social entre gêneros. Sentia-me um tanto atravessado pelo encontro. Ao me deitar, aninhei-me na cama e adormeci tocado pela nova amiga. Tive bons sonhos, pois era como poesia.
No dia seguinte. Acordei. E a rotina recomeçou. Café para despertar. Retomada da seriedade da vida a dois, da obrigação do compromisso, do casamento. Dia bem mais produtivo do que os anteriores. E, nessa projeção positiva, foi o início da semana. Naturalmente, as forças mentais, a criatividade e a paciência foram se esvaziando. A obrigação de uma vida voltada para a dedicação formal cansa.
Uma semana depois. Ansiedade e impaciência. Passei o dia inteiro levanto tudo à moda Bangu. Por uma maravilhosa coincidência, vi no facebook uma propaganda: Roda de choro! “Session ouverte de musique instrumentale brésilienne, partitions et grilles dispos sur demande”. Vejam só, uma roda de choro na Bretanha! O santo espaço era a Taverna Ty Anna, que fica na 19 place Sainte Anne. Há poucos minutos do meu apartamento. Coloquei no google maps, para não errar, e fui. Grupo Ressacada. Com esse nome, certamente deveria ser deliciosamente etílico. Entrei no bar. Logo fui ao balcão e pedi uma cerveja morgane. Com a cerva em punho, vou para a parte da apresentação. Clément no pandeiro, Jim Gautier no trombone, Benjamin no bandolim, Pauline no clarinete, Erwan no violão, Le Corre no trompete. Ainda tinham Joris, Jean-Batiste, Alban e Kawin a postos para tocarem também. E na voz de uma italiana, ouvimos “Tico-tico no fubá”.
Taverna Ty Anna
Lá encontrei a Nathalie, que me apresentou Emmanuel Tugny, professor e músico apaixonado pelo Brasil. Depois de várias morganes, ele queria montar uma banda comigo e com Jean-Batispte: Os Cuecas Voadoras. Ideias boas entorno de cerveja e de vinho. Quando estava em outra mesa, rindo com a artista plástica Theda, ela ressurge no meu caminho. Ella adentra o bar, e em sobe um calafrio ao vê-la. Embora ela tivesse inúmeros amigos para dar atenção, não demorou muito para que novamente ficássemos num canto, conversando sobre chorinho. Azilis havia cantado “Carinhoso” e “Lamento”. Valéria iniciava “Yaô”, após ter terminado “Rosa”. As músicas encantam a francesa.
- Minha mãe! Como são lindos esses choros! Por isso que adoro esse bar. Foi aqui que ouvi pela primeira vez um chorinho. Você aprecia choro?
- Sim. Dois momentos me marcaram bastante. A primeira vez que assisti foi no Café Cultural Sacrilégio, que fica na Av. Mem de Sá, na Lapa. Foi uma apresentação do Galo Preto. É um espaço repleto de histórias da música. Hoje, é mantido pelo poder municipal, mas já foi a residência, tipo república, de vários bambas do choro. Um deles foi João Pernambuco, autor da melodia “Luar do Sertão”: “Não há, ó gente, ó não / Luar como esse do sertão”. Conhece?
- Oui! Claro!
- Nesse casarão, Pernambuco organizava saraus e rodas de choro com a participação de Donga e Pixinguinha. Dizem que até Villa-Lobos e Carmem Miranda frequentavam esse território maravilhoso. A segunda vez foi em uma festa de São Jorge. O dia 23 de abril é do santo guerreiro. Eu fui a uma alvorada na casa do Cláudio Camunguelo, no Irajá. Camunguelo, para você entender, era um senhor autodidata. Sambista, flautista, compositor. Não sabia ler partitura nenhuma, mas tirava tudo de ouvido. Esse portelense, frequentador assíduo do bloco Cacique de Ramos, era um gênio! Eu o conheci quando comecei a frequentar umas rodas de samba na Lira de Ouro, em Duque de Caxias, na Baixada Fluminense. Eram organizadas pelo meu amigo Zé Afonso, que também me apresentou a um grande poeta, por quem eu já era apaixonado. Luiz Carlos da Vila. Luiz, Camunguelo, Zé e Bira da Vila. Só gente fina! Passei a beber com esse pessoal do samba. Eu já tinha ido à casa da namorada dele, em uma festa para pomba-gira Maria Molambo.
- Quem é Maria Molambo?
- Ah, meu deus, é uma história muito longa que não conseguiria explicar agora.
- D’accord!
- Foi linda a Alvorada! A feijoada estava deliciosa! Na noite de véspera, eu fui com meu parceiro Paulinho José. E começamos com samba. Foi lá que conheci Silvério Pontes e Zé da Velha. Esse Zé da Velha é tão baluarte que ele tocou trombone ao lado de Jacob do Bandolim, Donga, João da Baiana e Pixinguinha. Por falar nisso, dia 23 de maio é o dia do choro em homenagem ao dia da morte do Pixinguinha, autor das muitas músicas tocadas pelo grupo Ressacada.

- Mais je sais! Não sou formada em música, mas em História da Arte. Amo música brasileira! Esqueceu? Paris, onde se encontravam músicos de toda parte do mundo, Les Batutas, grupo relevante da música popular do Rio de Janeiro, passaram seis meses em Paris. De fevereiro a agosto de 1922. Durante esse período, o grupo se apresentou, dentre algumas casas noturnas, no antigo Shéhérazade, que se localizava em Faubourg Montmartre, n. 16, 9º distrito. Foi bastante importante para nós. Essa viagem deve ser um episódio de grande importância na história da música popular brasileira.
- É... é... é... como posso dizer... é... não é bem assim. Por um lado, estou assoberbado com seu conhecimento e paixão. Por outro... Na época dessa viagem dos Oito Batutas, houve uma confusão no Brasil. Como o grupo era composto majoritariamente por negros, os jornais discutiam se eles poderiam representar a música considerada nacional brasileira. A elite brasileira “branca” não aceitava. É isso aí que você disse sobre Paris, que era considerada a capital cultural do mundo. Logo, como é que uns pretinhos poderiam representar essa elite safada e conservadora? No Brasil, as avaliações foram de cunho racista e eurocêntrico, desqualificando a música nacional: o choro. E os jornais da época tentavam ridicularizar o grupo. Essa elite brasileira “branca” chamava de negroides rudimentares, quase selvagens e primitivos. Essa negritude era considerada inferioridade sociocultural. Mas o choro e o samba são os símbolos da música popular brasileira. É esse tipo de gente que elegeu um candidato idiota, fascista e de vocabulário chulo. E até hoje o defendem pelos canais midiáticos. Imorais e fascistas desprovidos de qualquer senso de intelectualidade e humanismo. Esse pessoal de camisa amarela e bandeira como capa de superpatriota...
Ella pousa suavemente a mão sobre o meu peito e o massageia.
- Tenha calma! Vamos apreciar o choro! Aqui na França também não é fácil. Já disse. É por isso nossa afinidade... são as lutas que escolhemos na vida. Aqui na França, não sei se você sabe, mas houve um caso muito engraçado nessa passagem do mestre Pixinguinha. Quando ele esteve com os Les Batutas, em Paris, para os shows, diziam que ele queria aprender novidades com músicos estadunidenses do jazz. Mas no final das contas, foi ele é que teve de dar aula para os professores. Ele era demais!
- Ah, então o bicho pegou!!!! Pixinguinha, sim está certa, era um mestre inato! Você precisa conhecer a música “Som de prata”, de Moacyr Luz e Paulo César Pinheiro. É simplesmente linda!
- Meu amigo, chegou minha hora de ir para casa. De novo, gostei de te ouvir. Au revoir! Bonne soirée!
- A toi aussi. Merci pour tout.
Novamente, me restou mais uma vez a bière. O Ressecada tocava sua última música. Assisti aos últimos acordes. Fim. Minha morgane ainda estava acima da metade da caneca. Trocamos umas ideias eu, Jean e Benjamin, que deu mais umas rabiscadas no bandolim para eu escutar. Terminada a cerveja, me despedi e fui embora, prometendo que os acompanharia, na próxima oportunidade, ao Penny Lane assistir ao jazz. Suave, voltei para casa pela rua da boca de fumo dos árabes, ou turcos, sei lá. Em casa, fui para ducha e higienes básicas. Um chá para relaxar mais ainda. Então, me preparei para tomar posse da minha posição na cama. Novamente, bons sonhos, pois era a poesia.
No dia seguinte, tudo voltaria normal. A seriedade do relacionamento a dois. De segunda a sábado, fui fiel. Somente tive atenção às tarefas domésticas, às idas na universidade e à escrita formal. Nem o bandolim foi ofendido por mim. Não tive olhos desviados para outras paisagens. Sacal. Estressante. Eu só pensava nela. Poesia. Acho que, na verdade, devo ter trocado os nomes. Aliás, eu já tinha percebido isso por várias vezes na semana anterior. E esses cruzamentos estavam me fazendo muito bem. Era ululante que algo diferente em mim me mudava.
Domingo. Já tinha feito minhas orações matinais aos meus antepassados. Quando preparava o almoço, recebo um zap. Era meu amigo Kawin: “Hoje tem Penny Lane. Bora!”. Encaminhei a mensagem para o camarada Alexandre. Respondemos os dois que sim. Além disso, Kawin queria falar sobre seu novo projeto musical. Queria uma audição amiga. Como prometido uma semana antes, fui ao tal pub Penny Lane, que fica na 1 Rue de Coetquen, a poucos passos da Place de la Mairie. O pub, uma homenagem aos Beatles, era uma antiga adega. Tem a aparência de pequenas cavernas com muros de pedra e teto abobadado. Eu e Alexandre chegamos umas 19 horas. Cassius, Jean e Sara já estavam bebendo. Como estávamos com sede, também pedimos logo duas canecas de cerveja. E ficamos apreciando o jazz. Eis que Kawin chega com uma amiga, nos cumprimentamos, eles pegam uma taça de vinho. Ele dispara:
- E aí, mano, tá gostando do lugar? É bonito?
- Meu mano, o bar é muito estiloso. Muito bonito mesmo. Por um lapso, senti algo parecido com o que me passou quando fui, pela primeira vez, ao um bar centenário lá no Rio. Trapiche Gamboa. Fica lá na Pedra do Sal. É um sobrado do século XIX, datado de 1857. O espaço é considerado um dos verdadeiros redutos do samba carioca, do choro, do jongo, do maracatu. Saudades.
Penny Lane.
- Hum, massa, mano. Mas e aí gosta mais de jazz ou de chorinho?
- Vou já viu a minissérie The Eddy, na Netflix?
- Não, do que se trata?
- Pô, você tem que ver. Maneiro! É um drama musical ambientado em Paris. Estou até me sentindo em um dos episódios da série. O jazz aqui te coloca em transe. Parece até com o gurufim que fizeram para o personagem Farid, depois que ele foi enterrado na tradição muçulmana. Veja. Vai gostar!

Luísa, neta da dona Theda, chega. Interrompemos a conversa para abraçá-la. Ela fica conosco por pouco tempo, pois logo foi chamada para cantar. Logo em seguida, Natália e Riwal chegam. Uma pessoa venda meus olhos com as mãos e me pede para adivinhar quem era, o que me deixa bastante surpreso:
-  Devinez qui est!
Eu não tive tempo para entrar no jogo, pois seu suave toque em meu rosto e sua voz em meus ouvidos me dissolveram em instantes eternizados. Eu não precisava dizer, apenas sentir. Era a Ella, que chegara com o casal e mais amigos. Nosso grupo ficou enorme, apesar de disperso. Nesse momento, Luísa começa a cantar “Fly Me to the Moon”. Ao término, ela engata ao estilo de Elis Regina: “Caía a tarde feito um viaduto / E um bêbado trajando luto me lembrou Carlitos / A lua, tal qual a dona de um bordel / Pedia a cada estrela fria um brilho de aluguel” A brasileirada canta em coro. A francesada viaja em êxtase. Um grita. “Ele não!” Os que estavam na sala de fumantes, que apelidei de fumódromo, relaxando sentados em poltronas de couro, lá permaneceram já que a acústica não permitia ouvirem a música.
- Linda! Que gostosa para dançar. Você conhece?
- “O Bêbado e a Equilibrista”! É do grande mestre Aldir Blanc, uma de suas canções mais conhecidas em parceria com outro monstro da música brasileira, João Bosco. Essa música deve ter mais de quarenta anos. Gosto muito das letras do Aldir, suas parcerias com Bosco, Moacyr Luz e Paulo Cézar Pinheiro. Só poeta. Olha, esses não morrerão nunca, pois como disse uma vez o João Bosco: “Uma pessoa só morre quando morre a testemunha.” E não faltam testemunhas até aqui na Bretanha! Você!
- Oui, oui!
- Essa música é atualíssima, pois aborda problemas da ditadura, que o nosso governo de extrema direita ama tanto.
- Nossa! Estou amando mais ainda as músicas brasileiras!
E Luísa emenda: “O Brazil não conhece o Brasil / O Brasil nunca foi ao Brazil”. Parecia homenagem aos amigos brasileiros via Aldir Blanc. E mais uma noite eu tive a feliz oportunidade de passar ao seu lado, de me declarar atraído, apaixonado. Mas a poesia não é da posse de ninguém. A poesia é livre para transformar os estados de alma que desejar. É preciso crer para ver. Mas ela tem de ser liberta para chegar aonde quiser. Porém, uma vez tocado pela poesia, eu já não era mais o mesmo. Em casa, minha relação havia tomado novos ares, adquirindo sorrisos líricos. Paixão verdadeira, somatória, e não substituição, subtração ou divisão. Foram três encontros com a música, a dança e a literatura. Ela, a poesia, dilui-se em mim no meu dia a dia.
Eu não sabia, mas era a última vez que veria a Ella. A quarentena nos confinou. Fiquei totalmente isolado de qualquer outro contato humano, além do bonjour, merci e bonne journée para a funcionária do caixa no mercado. Pensei que continuaria casado com a formalidade exigida pelo gênero do meu discurso, entretanto a chama da seriedade já havia assumido contornos poéticos. Mas essa percepção eu tive ao chegar em casa, um pouco cabisbaixo após as despedidas no pub. Se soubesse o futuro, teria vivido intensamente aquela noite. Ainda sem sono, abri uma última cerveja e fui para varanda, onde moram a trepadeira e a samambaia. Sentei-me de frente para elas, abri uma tripel, tomei o primeiro gole e fiquei olhando fixamente para o casal que se amava enroscado. Uma parecia engolir o íntimo da outra. Com olhos outros diferentes do dia a dia, percebi a beleza. Havia brotado uma flor. Mas gestado por quem? Era impossível saber tamanha a imbricação entre os seus interiores. Era a flor das intercircinações. E ri, ri gostoso de entender que o belo estava em não saber, mas na simples admiração do encanto. Seus entrelaçamentos, mudando para sempre as vidas tão regradas na obediência, valiam muito mais. Era a história de uma relação alimentada pelas paixões. No fim, quem se funde por dentro é mais feliz. A trepadeira não sufocou o feto, pelo contrário, deu-lhe mais motivos para viver. Elas compartilharam oxigênio, cresceram juntas e deram flores. Crescendo juntas, agarradas, imbricando-se por meses, ambas flores me ofereceram. O fruto da paixão entre a trepadeira e a samambaia foi como a germinação de uma tese poética. Seus ramos tão cruzados como DNA geraram as flores que pertencem às duas, e não a uma ou a outra. Essa é a flor do jardim da minha varanda.
Procurando desviar a seriedade, o foco do compromisso, entediado e estressado, saia à noite. Queria beber, extravasar, encontrar distrações que me animassem, esquecendo a minha parte do dia a dia. Conheci Ella, uma prosopopeia. Mas foi meu âmago que a definiu poesia, usando suas próprias classificações, e não outras. Tentando buscar esse estado de alma personificada, encontrei-a sendo produzida pelo meu interior tão repudiado por mim mesmo, de quem esperava as seriedades da formalidade. Ainda bem que a descoberta foi em tempo oportuno, já que foram muitas semanas confinado, isolado. E, por sinal, a convivência foi muito melhor do que esperava. Estávamos reencantados. Como a flor das intercircinações, o encontro comigo mesmo me trouxe paz.

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