“Uns com tanto, outros tantos com algum, mas
a maioria sem nenhum.” Esses foram os versos que escolhi para iniciar a minha participação
no Medellin Negro, congresso internacional apoiado pela Universidade de
Antioquia e Universidade de Los Andes, em 2016, na Colômbia. Para abordar o tema
Crime, Justiça e Literatura, propus uma leitura íntima e bem específica dos
pensamentos e das ações de dois personagens. Ainda que os romances sejam
distintos, Pastores da Noite e Tenda dos Milagres, esses dois
homens escolhidos pertencem ao mesmo mundo amadiano. Certamente, em algum
momento não narrado por Jorge Amado, eles estiveram juntos na percussão dos
atabaques do sacerdote Procópio de Ogum ou quando este deu obrigação religiosa no
famoso escritor baiano. Ou não. Talvez, o encontro tenha sido com Quincas Berro
d’Água, no cabaré de Quitéria do Olho Arregalado. Certamente, eles ofereceram
um pouco da cachaça que bebiam para Exu. Se os bastidores que a literatura, considerada
oficial, não registra são revelados pela literatura marginal, imaginem a coxia
social que esta literatura não destaca!
A minha proposta de fala era apresentar uma
leitura, admiração, bem recortada a respeito de Jesuíno Galo Doido e Pedro
Archanjo. Uma paixão sem objetiva explicação, mas de subjetiva identificação. Dois
personagens cativantes. Dois malandros. Dois anti-heróis. Dois sambistas. Dois inveterados
bons-vivants. Dois obás de Xangô, a divindade da justiça. Dois intelectuais
orgânicos. Dois protetores do povo negro, pobre e das religiosidades afro-brasileiras
contra os crimes da sociedade hegemônica. Era a vista do meu ponto sobre a violência,
o medo e a segurança pública segundo os posicionamentos políticos desses dois ministros
de Xangô. Interessava-me como Jesuíno Galo Doido e Pedro Archanjo, representantes
do pensamento mítico animista, atuavam contra a violência policial. Essa instituição
criada para defender os objetivos das empresas hegemônicas, dos uns com tanto e
outros tantos com algum, lançava seus representantes munidos de cassetetes
contra o povo pobre negro, esfomeado e marginalizado dos morros e das favelas, “a
maioria sem nenhum”. A literatura me preenche na memória tempos que não me
recordo por não os ter experimentados em primeira mão. Porém, esses dois
personagens apaixonantes me avivam intensamente a memória da infância na
Baixada Fluminense.
A rua que comecei a desbravar quando moleque
pequeno era de terra, com um valão para caçar girinos e muito mato servindo de esconderijo
para a mosquitada. Ratos, aliás, ratazanas em nossas casas? Prefiro não
lembrar. Nessa época não passavam carros, e a rua era uma savana tranquila e livre
para as brincadeiras simples. Mas os tempos do progresso chegaram. A rua Carlos de Mattos foi asfaltada,
e surgiram os carros, o corre-corre dos piques melhorou, os patinetes descendo
do alto do morro, a bola rolava mais redonda, a caminhada dos moradores mais
leve, calçados menos sujos de lama, saneamento básico, água na bica sem ser do
poço, mais dignidade e mais sorrisos. Éramos como os capitães de areia sem
delitos, por menor que fossem. Calma, minto, havia as mangas que pegávamos no alto da árvore atrás do quintal da dona Raimunda, sem o consentimento
dos donos. Agora, sabe esses memes que fazem de crianças dormindo com os pés
sujos? Em nossos desejos, não tínhamos hora certa para diversão. Talvez, já tivéssemos
tomado banho, mas aquela brincadeira irresistível que começa de noite, hum, então,
é isso. Saíamos de casa advertidos sobre não corremos para não suarmos. Corpo
limpo, roupa limpa. Todavia, fazíamos pior do que suar. No retorno, às escondidas,
alguns lavavam apenas os pés e o rosto para não serem descobertos. Contudo,
outros dormiam com os pés sujos. Nem todos sempre saiam impunes por serem rueiros.
Alguns tapas no pé da orelha, vassouradas, cintadas, soco com anel de bicheiro,
chineladas do pesado rider. Pior, além disso, eram os banhos frios na mangueira
do quintal ou no tanque, com a mãe castigando ao passar o escovão e o sabão de
coco, para tirar o encardido. Couro quente da surra, escova cortando a pele e
água fria.
Porém, outros tempos, novos acontecimentos.
Com esse progresso urbano, dois temores passaram a nos atormentar no bairro Centenário. O tráfico nessa
localidade era silencioso, limpo e sem cheiro. Era realizado pelas antigas
crianças pobres, agora homens adultos. Por que silencioso, limpo e sem cheiro?
Não havia rastros visíveis ou sonoros ou vaporosos. As pessoas sabiam, mas não
viam. Pelo menos eu não via. E a comunidade era feliz com as festas de São
Cosme e Damião, sem roubos locais, sem desrespeito aos moradores, podendo as
crianças ficarem nas brincadeiras da rua despreocupadas. Alguns moradores ficavam
sentados ao portão de casa, jogando buraco, sueca, ou conversa fora. Creio que
algumas das violências de hoje sejam as mesmas de ontem, embora sem os requintes
de crueldade alimentados pelo sadismo dos compartilhamentos pelos grupos de WhatsApp.
No entanto, se existia violência naquela rua, sua punição também. Lembro quando
um colega malocou um tênis do nosso quintal... me disseram que a sentença foram umas pauladas nas mãos, tipo Zé Pequeno: “quer tomar paulada onde, no pé ou na
mão?” A lição aprendida pela dor era a de não mais roubar, imagino. Os mais drásticos
diziam que o pedaço de madeira tinha até prego. Ninguém sabe, ninguém viu. Todavia,
mais imoral e violenta era a fome. Era não ter dinheiro para o que comer. Não passei
fome, mas entendo que havia muitas privações alimentares entre meus colegas. Por
isso, a ajuda financeira. Tem gás para fazer a janta na sua casa? Toma aqui!
Aproveita e compra um pão quentinho pra minha tia, manda um beijo pra ela. Riquinho,
tá faltando comida lá em casa, tem como dar uma ajuda, por favor? Porra, por que
não me falou logo? Toma aqui, manda um beijo pra tia. Não me lembro de uma
única marca de expressão na testa de qualquer pessoa, de criança a idoso, que
fosse nos dias festivos organizados pela galera da Boca. Nesses dias, parecia
que a polícia mantinha uma auréola de paz e de proteção em torno do morro. Faz-me-rir,
arrego, diziam, não sei. A origem ou efeitos dessas relações financeiras não as
conseguia conceber, nem eu, nem quem eu conhecesse. Nosso mundo era pequeno
demais, se resumindo à escola e a duas ou mais ruas adjacentes. As restrições sociais
eram demasiadas. Na área médica, havia moradores que só conheciam as católicas curandeiras
ou rezadeiras, aquelas que indicavam as ervas contra qualquer mal do corpo e do
espírito. Quantas mães de santo deram apoio psicológico e proteção espiritual e
prato de comida! No alto do morro, quantas pastoras encorajaram seus fiéis e
irmãs a terem esperança e perseverança para reverterem a onda do desemprego! E olha
que nem ensino fundamental muitas delas tinham. Nosso lazer era pipa, jogar bola
e brincadeiras coletivas, como pique bandeira, escondidinho, queimado, tacobol.
Os trâmites econômicos do morro não importavam, pois o que olhos não viam, não nos
culpava na consciência ou machucava nos sentimentos... principalmente se estivessem
ajudando a fornecer comida à mesa para alimentar inúmeras famílias. Seriam possíveis
interpretações menos ingênuas sobre esse tempo? Sem sombra de dúvida,
principalmente em tempos de ultradireitismo “branco” “cristão”.
Mas também havia tempos tenebrosos. Atritos
com traficantes de outros lugares e facções que tentavam invadir a área comercial
do morro. Isso nos causava muito medo. Quando havia confronto com outros traficantes
rivais era terrível! Quando havia incursões policiais, que não eram tão
assíduas, mas também assustadoras, podíamos ver na rua a tropa militar subindo
o morro. Armas em punho e marcha sincronizada. O tempo parava. Aliás, não existia
mais tempo fora daquele ao que éramos obrigados a viver. Sentimentos misturados:
medo e insegurança. Parecíamos culpados por morarmos ali. Era igual a um
sermão. Mas também tinha uma noção de segurança... não sei como, mas acho que
tinha. Não havia diálogo, só ordens a obedecermos. Entra, porra! Sai da Rua!
Mão na cabeça, vagabundo! Mete na caçapa! Pense, leitor, eu era criança e
pensava que a polícia é que nos deveria trazer a sensação de segurança, como eu
via nos filmes. Em outras ocasiões, tínhamos medo de quando a polícia subia o
morro voando com seu camburão. Nosso imaginário assim foi criado. Não sei como,
mas eles chegavam ao alto do morro em passe de mágica. Era um corre-corre disgramado.
Mães, pais, avós vizinhos gritando “sai da rua! sai da rua! sai da rua!”... como
éramos ninjas, nenhuma criança nunca foi atropelada, acho. Sempre de caras
fechadas, de mal, marrentos, visagem de quem poderia me bater a qualquer momento
sem eu poder chorar, temendo que isso pudesse ser confundido com reação. Por outro
lado, o pai dos meus vizinhos era policial, e quando na casa deles eu estava
para brincar, eu tinha a imagem de que se tratasse de um pai carinhoso. As imagens
ficam conflituosas. Eu adorava assistir aos filmes do Esquadrão Classe A e do Charles
Bronson, sempre combatendo malfeitores. Quantas vezes subia freneticamente o
muro do quintal com um cabo de vassoura, cantarolando a abertura da série SWAT,
comando tático especial. Mentalmente, a música saia perfeita! Como a televisão
mostra uma noção heroica, a rua mostra outra, e na casa vizinha é paz e amor? Assuntos
de memória são assim mesmo.
Definitivamente, minha rua pertencia à maioria
sem nenhum.
Agora, eu me lembro do meu avô Octacílio. Na
verdade, o nome do meu avô era “vô”. Eu só o chamava dessa maneira. Meu avô não
se sentia pobre, pois tinha um teto, tinha comida à mesa, tinha uma família estendida
por vários netos. Ele recebia sua suada aposentadoria. Meu vô me educava com umas
lições que me povoam desde minha infante audição. Para comida, ele dizia o
seguinte: ‘Saco vazio não fica de pé”. Para os obstáculos da vida, ele
vaticinava: “Para vencer na vida é preciso estudar.” Sobre o relacionamento com
a polícia, ele costumava asseverar sobre os possíveis encontros: “quem não deve,
não teme”. Nada de correr da polícia quando ela chegar, pois somente quem tem
algo de errado escondido é que deve temer. Somente a culpa é ocultada. Ser pobre
sim, mas limpo de roupa e de caráter. Essa era lição dele e de muitos outros mais
velhos vizinhos. Meu vô, eu o conheci como um homem do dia, logo, essa máxima de
honra para ele deveria fazer sentido. Homem que pagava suas contas, que fazia a
feira toda quarta na rua Joaquim Nabuco. Nome limpo, sem dívidas. Para ele, essa
frase significava sua idoneidade para a polícia. Ele não imaginava que pudesse
ser um pretexto usado para que não houvesse nenhuma proteção aos seus direitos,
à intimidade da sua vida privada.
Eu cresci com essa ideia.
Mais de uma década depois do falecimento
do meu vô, eu conheci a música “Maioria sem nenhum”, samba de Mauro Duarte e
Elton Medeiros. Em uma tarde de sábado, ouvi pela primeira vez na voz do
portelense Cláudio Camunguelo, quando ele fez uma de suas aparições na Lira de
Ouro, em Duque de Caxias. Esse mesmo flautista autodidata, com quem eu fiz amizade,
eu o convidaria para integrar a plêiade de sambistas que participariam de um
encontro sobre samba, em homenagem a Candeia. Semanas depois desse dia, eu já
estava com o álbum em mãos, apreciando a letra na interpretação do próprio
Elton. O long-play Samba na Madrugada (1968) era dividido com o então jovem
Paulinho da Viola. “Maioria sem nenhum”: samba de cunho social. A letra dessa música
trata dos belos, mas vazios e falsos, discursos, os quais, em momentos
oportunos [principalmente na política], talvez movidos pela falsa moral religiosa,
apenas prometem soluções às aflições dos mais necessitados. Em uma sociedade que
políticos usam o jargão “Deus acima de todos” para justificarem suas ideologias,
“há muita gente neste mundo estendendo a mão, implorando uma migalha de pão.” O
palco-palanque para cena teatral está armado! Em contrapartida, o conselho do
sujeito lírico é de viés social: que “uns com tanto” se solidarizem com “a
maioria sem nenhum”. Nessa sociedade violentamente governada para reprimir quaisquer
políticas públicas para o povo, se quiser viver bem, a única saída para o pobre
é que seja anarcocapitalista, é o que defendem “outros tantos com algum” que se
pensam como “uns com tanto”. Assim aprenderam após assistirem a alguns vídeos
no youtube. Por isso, mais de outra década após esse encontro com Elton Medeiros
pela interpretação do partideiro Camunguelo, essa foi a epígrafe usada para apresentar
essa sociedade composta de uma maioria sem nenhum na literatura de Amado.
Enfim, em Medellin, segunda maior cidade
da Colômbia. Localizada em uma região central da Cordilheira dos Andes, na
América do Sul, Medellin é uma cidade propícia para amizades, apesar do mal-entendido
inicial. À noite, o taxista quis me enrolar, me levando para um outro hotel.
Porém, eu percebi a armação e pedi que me levasse para o hotel certo, o qual eu
tinha reservado, Hotel Columbia. Malandragem dá um tempo! Me levou para o lugar
certo depois. Cara safado, hein?
Primeiro dia. Medellin e suas lembranças
do Rio de Janeiro. Na Comuna 13, comunidade bastante visitada com suas escadas
rolantes, sinto-me nas favelas cariocas. Com seu teleférico, irmana ali o
Complexo do Alemão. Cidade do famoso chefe do cartel Pablo Escobar e das
versões não-oficiais muito diferentes das midiáticas. Na visão de alguns, Pablito, o homem que ajudou
os pobres, tirou inúmeras famílias das condições subumanas em que viviam nos
lixões da cidade. Isso me anima na memória a imagem da “galera da Boca”, em
Caxias. E não que eu tenha perguntado sobre Escobar, mas meus informantes,
comerciantes de rua, quiseram me dizer. E é engraçado como em quase toda
situação pintam as histórias sobre futebol. Em minha memória, apenas lembrava
de Valderrama, Iguaran, Escobar, Higuita, Asprilla, Rincon, Redin. Citei o Gustavo
Cuellar, mas desconheciam. Mas alguns taxistas estavam preocupados com um tal
de Santa Cruz, que jogaria contra o Independiente de Medellin, pela Copa
Sul-Americana. Eu apenas disse que deveriam tomar cuidado com um jogador chamado
Grafitte. Falei para tomarem cuidado, porém, de nada adiantariam minhas ressalvas,
pois esses torcedores estavam confiantes demais. Passeando pelas ruas de Medellin,
conheci as rechonchudas esculturas de Fernando Botero, na praça com seu nome, e
o Museu de Antioquia. Depois de beber umas cervejas da marca 3 Cordilleras,
acompanhado de manís (amendoim), fui visitar o Teatro Municipal Alcadía, onde o
segurança Vanegas foi, gentilmente, meu guia no espaço interno.
No segundo dia, ocorreu a abertura do Congresso Internacional Medellin Negro, que ocorreu no Salão Humboldt do Jardim Botânico de Medellin. Nesta bela paisagem, estava coincidentemente ocorrendo a festa do livro e da cultura, a qual era visitada por muitas crianças e estudantes.
Escultura de Fernando Botero. Foto: Fábio Penna. |
No segundo dia, ocorreu a abertura do Congresso Internacional Medellin Negro, que ocorreu no Salão Humboldt do Jardim Botânico de Medellin. Nesta bela paisagem, estava coincidentemente ocorrendo a festa do livro e da cultura, a qual era visitada por muitas crianças e estudantes.
O terceiro dia era o da minha apresentação.
De manhã, antes de sair para pegar o metrô, desejava comer algo. Embora o
apetite, não consegui comer o desayuno que tinham me sugerido. Era um enorme pão
de queijo e grandes pedaços de pollo assado. Para degustar já no desjejum, não iria
cair bem. Para o meu intolerante estômago, fiz bem em beber só o cafezinho. E com
o auxílio de Pedro Archanjo e Jesuíno Galo Doido, esses obás de Xangô, abordei
o tema do animismo no combate aos crimes institucionais e às injustiças sociais
nos romances Tenda dos Milagres e Os pastores da noite.
Foto: Fábio Penna. |
Participação realizada. Faltavam três dias
para o retorno para o Rio. No Hotel Mi Colombia, onde estava hospedado, segui
as sugestões turísticas do gerente Antônio. Aproveitar os dias restantes. Ele tinha
me convencido conhecer Cartagena das Índias. Até me ajudou na compra de
passagens por um preço em conta. Ele imprimiu as informações de voo, da empresa
nacional e as passagens. Cara muito bacana. Seria bom conhecer o local onde o
presidente colombiano e o representante das Farc assinariam o acordo de paz, pondo
um possível ponto final ao conflito armado que atormenta o país há mais de 50 anos.
Com cara, coragem, vontade e portunhol fui.
Seriam dois dias em Cartagena das Índias. Aeroporto Internacional Rafael Núñez!
Checkin sem problemas. Avião pequeno. Viagem tranquila. Em menos de uma hora
estava na abafada Cartagena. Início de uma noite quente. Fiquei pensando se
pegaria ou não um táxi. Queria descobrir uma outra forma para chegar
ao hotel reservado, Casa Victoria. Embora pensativo, ao fim apostei no táxi.
Sorte. Era um senhor muito gentil, que gostava de ouvir Roberto Carlos. O Hostal
Casa Victoria fica na calle Tripita y Media, 31-08, bairro Getsemaní, ou
melhor, na carrera 10. Para esse endereço, o taxista me conduziu honestamente. Getsemaní
é um local colado ao centro histórico de Cartagena, podendo ir a pé. A entrada
do hotel era atraente, mas as estreitas ruas aparentavam estranhas. De imediato,
me lembrei da rua Joaquim Silva, a da escadaria do Selaróm, na Lapa, onde fica um
depósito de bebida sempre lotado e onde não é anormal encontrar uma galera
apertando ou vendendo um baseado. Na Casa Victoria, fui bem atendido. Peguei
dois cartões de visita do hotel. Peguei a chave e subi para o quarto. Tirei a
roupa da mala, tomei um banho, me arrumei, tirei uma self no espelho, botei uma
calça jeans, uma camisa azul e o chapéu de Panamá. Para onde vou? Para o centro
histórico! Já tinha a senha do wifi. Pesquisei rapidamente pelo celular. Descobri que havia um bar cubano que foi muito frequentado pelo escritor Gabriel
Garcia Márquez. Que maravilha! O bar ficava pertinho daqui. Era o famoso Café
Havana. É para lá que vou. Como eu dormiria por duas noites, no terceiro eu
voltaria para Medellin. Seria bem cedo. Não poderia nem contar com atrasos nos
voos. Ou seja, aventura pura. Beleza!
Café Havana. Foto: Fábio Penna. |
Fui para rua. Novamente me vem à cabeça a
similaridade das ruas de Getsemani com as ruas da Lapa, aquelas que ficam próximas ao santuário do Zé Pelintra. Os becos e as vielas. Mas vamos que vamos
que não devo nada a ninguém! Andando devagar por uns cinco minutos, cheguei ao Café Havana. À entrada, o segurança me disse que faltavam
uns dez minutos para abrir. Caso não me engane, eram umas 20h10. O que faria até
abrir? Espero aqui na entrada? Mas tem ninguém. Resolvi dar uma voltinha pelas
ruas e retornar, pois daria o tempo suficiente para abrir e ter gente. Eu apenas
continuei seguindo a rua carrera 10.
Cinco minutos depois me deparei com vários
grupos de pessoas em uma praça, que ficava em frente na praça da Igreja da Santíssima
Trindade. Bastante gente na rua nessa noite quente. Coincidentemente, havia uma
missa em percurso. Como havia muitas pessoas na igreja, fui para porta lateral,
na rua ao lado. O interior da igreja estava escuro, sendo alumiado apenas pela
luz das velas seguradas pelos fiéis. Os sons que vinham de dentro lembravam
batucadas. E havia muita fumaça saindo dos turíbulos que chegavam a me recordar
até um centro de Umbanda. Fique até tonto com tanta fumaça. Resolvi sair e
seguir mais adiante, conhecer outras as ruas. Enfim, turistar.
Continuei minha caminhada para fazer tempo,
embora a essa hora o bar já estivesse aberto. Seguindo na carrera 10b, havia
pouca gente. Há uns dez metros mais para frente, tinha um grupo de quatro
homens sentados na calçada. Por isso, resolvi atravessar para o outro lado.
Quando passei na altura em que eles se encontravam, um deles me perguntou se eu
gostava de rumba. Creio que tenha sido isso, pois não entendi. Fui surpreendido
ao puxarem papo comigo. Sem pestanejar, educadamente cumprimentei e disse que
não: “no... mi gusta samba”. Não parei, não dei atenção, mas também nem sei se
entenderam. E continuei andando apenas os vigiando de soslaio. Ih, papo furado
pra cima de mim, é ruim, hein? Vão se danar! Foi então que cheguei a uma pracinha,
Del Pozo, onde havia algumas esculturas de bronze, um poço no meio e uma
pizzaria. Parei, tirei algumas fotos. O que faço agora?, pensei. Vou até o
final dessa rua, faço o contorno direita-direita e volto para praça da Igreja.
De lá vou para o Café Havana. Ótimo! Então, fui andando até o final da carrera
10b.
Quando cheguei ao final da rua, era uma
avenida e não tinha uma alma viva. Caraca! Somente passavam carros, pouquíssimos.
Passou um policial motociclista, o que me tranquilizou. Enfim, virei à direita para
carrera 25 e marchei até chegar à carrera 10, para volver à direita. No final desta
rua estariam a igreja e o caminho para o Café Havana. Eu andei na paz da rua
vazia. O policial parou à entrada da carrera 10, o que me tranquilizou a seguir,
já que havia policiamento. Passei por ele sem olhar, pois eu não devia nada,
logo para que temer. Não é esse o ditado que aprendi na infância? E de novo pensei
ainda bem que tem policiamento. Quando havia andado uns 15 metros em retorno à
igreja, escutei o barulho da moto adentrando a rua. Tocou a sirene. Parou em
minha direção e pediu para eu parar. Educadamente, acenou para que eu parasse. Tirou
seu capacete e vi seu semblante estava tranquilo. Era um servidor apenas exercendo sua função. Ele me enquadrou na carrera
10 em frente Fedora Libro Café. Pediu que eu tirasse o panamá da cabeça, que ficasse
de costas, colocasse as mãos na parede, abrisse as pernas, pois ele me daria
uma geral. Tudo de praxe. Antes, levantei a camisa para mostrar que não portava
nenhuma arma. Ele averiguou o conteúdo dos bolsos de minha calça. Revista
feita. Confesso que, interiormente, estava meio soberbo, com um ar simpático.
Por favor, quem não deve, não teme, só pensava. O servidor estaria perdendo
tempo comigo. Me virei de frente para ele, que me pediu para não deixar o
panamá no chão. Pediu meu documento. Eu estava com a carteira de motorista. Ele
nem ligou. Então dei um cartão do hotel em que estava hospedado. Olhou, disse
que estava tudo ok. Me perguntou se eu tinha drogas. respondi que não. Pronto, trabalho feito, nada constatado. Voltemos à vida. Estava preparado para retomar meu rumo, aguardando
somente receber meu documento. Porém, ele não devolveu, mantendo em sua posse. Ele
vaticinou que eu entregasse as drogas. O quê? Entregar as drogas? Me deu vontade
de rir. Que drogas? Tá maluco? Pensei. Yo no tengo drogas. Me entregue as
drogas, você tem sim. Eu sei de quem você comprou e onde comprou. Não adianta negar.
Pode passar, pois, senão, ficará complicado para o seu lado. Me mandou tirar os tênis. Pediu minha carteira. Embora a passividade, ele insistia com o dedo em riste que eu cooperasse entregando a droga. Caso contrário, ele chamaria a
viatura. Aí iria ser pior, pois ele não teria como me salvar da delegacia. Provavelmente
eu dormiria numa cela e seria violentado, estuprado, talvez deportado. Mas, calma
aí! Quem não deve não teme. Errado. Quem não deve também deve temer. Principalmente
nas cinzas das horas. Maldito, canalha, corrupto. Meu avô, acho que o senhor estava errado ou, então, esse é o ensinamento que deve ser dado a uma criança de favela. Quem não
deve algo também teme. Não há segurança. Há medo. Temer não devendo? Queria que essa
sensação não habitasse em mim. Não temer, não temer. Repetição como mantra para
tranquilizar a mim mesmo. Como um policial, aquele que deveria me trazer a sensação de segurança, me pergunta se tenho drogas e depois mente com veemência? Esse temer incrustado em minhas entranhas me causa
uma síndrome de pânico.
Cara pasma. A ficha não caiu. "Yo no tengo
drogas". Eu dizia intranquilamente que não. Ele retrucava serenamente que sim. A
ficha caindo. E assim ficamos por horas. Eu estava desesperado. Já pensava nos
sofrimentos pelos quais passaria, pois o policial era convincente. Ele insistia,
e eu não sabia dizer nada além "Yo no tengo drogas". Quando um morador resolveu ver
o que passava em frente de sua casa, o policial mudou. Ficou apreensivo. Eu olhei para minha mão. Minha pulseira de contas vermelhas e pretas,
apertei-a e falei com meu interior. Em minutos, a viatura da polícia
despontou na esquina. Pensei: fudeu! Vou ser preso na Colômbia. Ele deu um alô
e o carro foi embora. Viu, eu não deixei eles te levarem. Mais fichas caindo. Eu
pensei, porra, ele poderia ter plantado um flagrante no meu bolso. Meu destino está nas mãos dele. Ficamos mais
de vinte minutos nesse terrorismo psicológico.
Eu, estrangeiro, estava sob a ameaça de
uma acusação sem provas, e cabia a mim provar minha inocência, ainda que não
tivesse drogas. Eu deveria ser confrontado com as provas da culpa, que deveriam
ser apresentadas pelo policial. Me deu uma dor no peito: meu deus, ele ainda pode plantar um flagrante no meu bolso. O que ele disser será a verdade. Pensei repetidamente. Fui culpado e penalizado pelas provas que o
acusador não apresenta, mas da qual tenho que entregar. Para me inocentar de que culpa? Quem desrespeita a presunção de inocência chega ao ilusório
argumento de que quem não deve não teme. Quem não deve é quem mais tem a temer?
Eu não devo! Essa é minha garantia de que não devo ser punido sem a legítima
prova a meu desfavor! Ainda que ninguém seja culpado até que se prove o
contrário... no meu caso, o policial era o acusador, o advogado, o juiz e o
carrasco.
Então surgiu outro policial em moto. O companheiro
chegou, eles trocaram umas palavras que não entendi. Ele me disse que iríamos
para outro lugar. Pediu que eu andasse ao lado dele, sem chamar atenção dos
demais transeuntes. Nada de alarde. Tentei disfarçar o máximo para que ninguém percebesse
que eu estava sendo conduzido. Durante a caminhada, fui explicando o motivo turístico de estar em Cartagena, que havia participado de um congresso em Medellin. Após passarmos a praça da igreja,
ele me levou para outra rua deserta. Pediu que eu fosse na frente. Pensei...
enfim, estou nas mãos dos caras. Vão me cobrir na porrada, vão me algemar. Não tenho escapatória. Chegou o dia de minha morte. Serei assassinado pelas costas com tiros
que não sei quantos... nem quando ele irá disparar. E eu marchei pela calle
29. Era o meu assassinato. Mas não atiraram. Quando eu estava a quase
uns 100 metros, em frente ao Bar Puntanorte, eles vieram montados em suas motos.
Ele conversou mais com o colega de profissão. Não entendi bem, tamanho o meu desespero.
Eu nem conseguia dizer qual era o meu nome. Todavia, a palavra “denaro” não
passou desapercebida. Mandaram que eu explicasse tudo de novo. Me mandaram arriar as calças. Quem pensa que está prestes
a ser morto não deve ter vergonha de mais nada. Calças até o joelho. Humilhação?
Nada! Não tive vergonha da nudez. Eu me sentia apenas corpo frio quase sem vida. A mente não para. Não
sei quantas horas e metros de terror psicológico. Me mandaram levantar as
calças e me deram um esporro. Que eu não andasse mais por aquelas ruas, pois era lugar de marginal e de traficante. Eles sabiam onde eu estava hospedado e quais poderiam ser minhas intenções naquela cidade. Enfim,
me liberaram. Vagarosamente, voltei cabisbaixo e aliviado para o hotel.
Gabriel Garcia Márquez. Foto: Fábio Penna. |
No hotel. Mil pensamentos. Fugir
imediatamente para Medellin, antes que viessem me extorquir. Não. Rezei. Rezei. Rezei. Agradeci. Me acalmei. Mandei mensagens para algumas pessoas, para que tivessem notícias minhas caso eu sumisse. Então, pensei: vão todos para o inferno! Eu vou me
embriagar. Eu vou é beber! Vou me aliviar, pois foi para isso que vim. Fui para Café Havana. Com medo, com as pernas bambas. Quem disse que tive
esses pensamentos na hora do sufoco? Nada. Era só “sim, senhor”, “não senhor” e
“yo no tengo drogas”. Se não pudesse desabafar, ao menos beberia e dançaria. Foi
então que conheci as baianas Paula e Rita, quem salvaram minha alma. Bebemos, sorrimos, desabafei, bebemos,
dançamos, bebemos. Depois fomos para encruzilhada entre a calle 30 com a calle 07, onde ficamos no Don Ambro’s, que fica de frente para o Bar
KGB Coffee. Ao som de Buena Vista Social, bebemos rum e fumamos um charuto cubano. Ao lado, a igreja de Santo
Toribio, bem pertinho da Casa de Gabriel Garcia Márquez. Não teria como terminar a noite sem homenagear a malandragem amadiana, a carioca e meu vô... curtir como um bon-vivant. Apenas fui vítima de um mau exemplo, que, por algum motivo, não conseguiu exerceu o seu poder escondido pelas sombras da noite. Tinha de agradecer a Exu e a Xangô
Pintura feita do Buena Vista Social, no Don Ambro's. Foto: Fábio Penna. |
Sociedade da pós-verdade. Fui a Medellin
falar sobre o animismo e os ministros de Xangô na luta contra os crimes e as
injustiças causadas aos pobres da Bahia. A violência da polícia, representante
dos interesses dos donos dos bens privados, contra povo negro do candomblé na
literatura de Jorge Amado. E fui vítima da mesma violência, que me causou danos
que tento sanar até hoje. Mas é a mesma violência que amigos de infância, quase
todos negros, sofreram. Jesuíno Galo Doido e Pedro Archanjo, representantes da
maioria sem nenhum, não morreram em vão. Como meu avô, suas memórias estão vivas. Esses representes
da polícia, quase todos negros também, já eram técnicos na pós-verdade no curso
técnico de pós-verdade. Representantes de um projeto de governo que, anos
depois, mostrar-se-ia fascista e genocida. O demônio nos habitava o
inconsciente e às vezes ele se manifestava em nossa imaginação. Mas o pior é
quando não conseguimos tratá-lo e ele começa a se personificar como depressão. Nessa
noite em que minha sanidade mental foi violentada, eu abortei um rebento que nem
sabia que estava gerando. Era uma melancolia que, quando voltei ao Brasil, sobreviveu como síndrome do pânico. E essa criança tinha pais brasileiros. A mãe era Golpe
16 que se casou com a Besta 17. E esse casal alimenta bem essa criança. Ainda bem
que uma semana antes da minha viagem para Medellin, eu tinha oferecido um pombo e um frango a Exu. Imaginem o que me esperava e do que fui livrado. Exu é
aquele que mata o pássaro ontem com a pedra que lança hoje. Ele é aquele que
transforma o certo em errado e o errado em certo.
Foto: Fábio Penna. |
Boa leitura👏👏👏👏, no início me vi no quadro descrito,viajei na história .Conheci Medelin e Cartagena , caramba se fosse comigo estaria em casa até hoje ,...😲
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