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O RELÓGIO NÃO PARA, MESMO SEM BATERIA

 

Há mais de dez anos, quando estive em Belém, no Pará, eu comprei um relógio. Observando as vitrines do shopping, avistei um modelo que me agradou. Eu queria substituir o que me havia sido presenteado por uma ex-namorada. Como esquecer de alguém se você usa uma lembrança dada por essa pessoa no pulso pelo dia inteiro? Ainda mais um utensílio que nos prende, estilhaça como poeira e orienta no tempo. Comprei um maior, moderno e mais bonito, porém prateado e da mesma marca. Muito radical, né?! Até parece. Aposentei o antigo objeto em uma gaveta e passei a usar o meu novo xodó, representação de uma nova caminhada. Status de titularidade. É aquela repaginada que cismamos em realizar no final de uma relação amorosa desgastada. É como se renovássemos o material, imaginando, equivocadamente, mudar o espiritual. Também não vou negar que dá uma aprumada na autoestima. Todavia, associar consumo a melhoria interna pode ser muito nocivo.

O "novo" relógio passou alguns anos no meu pulso esquerdo, orientando minha ordem na vida. Sem apresentar problemas, somente trocava a bateria. Eu somente lembrava do outro, o antigo, quando, procurando por documentos, abria a gaveta onde ele estava confinado. Jogado, quieto, infuncional, parecendo morto. No entanto, era quase impossível ou irresistível, não sei, não me trazer lembranças antigas ao vê-lo. Mesmo sem seus ponteiros girarem, como se indicassem os fragmentos da existência viva do antigamente, eu era seu servo. Dizem que quem trabalha de graça é relógio. Malandragem, nessas relações trabalhistas, será que o relógio seria o nosso empregado? Sei não, hein? Esse tal de relógio é a personificação do Tempo, a senhora Morte. Fecho rapidamente a gaveta, mas já contaminado pela memória.


Nossas escolhas são muito patéticas. Ou a infantil e automática tentativa de negação das escolhas é que seria? Por que eu ainda guardava o relógio? Eu não poderia ter dado para alguém? Eu poderia ter jogado fora! Não, jogar fora não, pois... tenho até medo da justificativa que posso escrever aqui. Vou sepultá-la com um ponto final. A ideia de "opção" Almir Guineto já reiterava com o ditado popular: “mais vale um pombo na mão do que dois voando em vão”. Para que ter dois relógios, já que um não usaria mais? Calma... ou usaria? Colecionador de relógios ou de sentimentos? Todos temos alguma quinquilharia que nos recorda de uma memória inadmissível de certa responsabilidade. Lembrança que nem cogitamos pensar para não sabotarmos a nós mesmos. Como máscara africana, o relógio guarda um imaginário adormecido, que somente os iniciados nos segredos místicos temem a abertura do portal memorialista.

E assim por anos usei meu relógio “paraense”, registrando meus novos passos. Quatro anos depois, eu estava trabalhando em uma cidade do interior do Rio de Janeiro. E como bon-vivant, gosto de conhecer do boteco mais cospe grosso ao mais sofisticado. Foi em uma noite de descobertas que conheci um bar ao estilo underground. Para uma cidade pequena na encruzilhada entre Minas, Rio e Espírito santo, não é um achado simples. Era um pub tipo subterrâneo, que ficava perto da antiga estrada de ferro, que corta a cidade, por onde um dia tramitaram pessoas e mercadorias. Salve o deus ferreiro! Salve os encontros da vida! Salve as encruzilhadas. Pedi para o taxista parar. Desci do carro. Adentrei e atravessei o pequeno salão, que chamava Sauer. Sentei próximo ao banheiro. Sozinho, solitário e calado, o meu normal. Eu, meu celular e minhas raras companhias virtuais. A garçonete me atendeu. Ela tinha olhos de ardósia. Encarnação da simpatia. Eu disse que gostaria de um uísque daniels, pedi o cardápio, mas depois iria querer uma cerveja alternativa. Foi então que ela disse ter uma garrafa da cerveja coruja, disponibilidade que muito me animou. Queria relaxar após um dia exaustivo. E seria bebendo pouco; porém, bem. Nessa noite, fazia muito calor, mas eu estava vestido formalmente. Enquanto ela preparava o meu drink, levantei a cabeça para observar disfarçadamente, porém melhor, o espaço pouco iluminado em que me encontrava. Como minha timidez não me permitia muita liberdade, de soslaio fiz uma varredura. Na parte de fora, havia um casal à mesa bebendo cerveja e comendo alguns petiscos. Pela voracidade, deveriam estar aplacando a fome. Meu estômago estava embrulhado, porém, precisava pesar algo na barriga. Meu relógio havia parado novamente, apesar de eu ter trocado a bateria em menos de uma semana. E isso me incomodava bastante. Por que coisas tão pequenas me incomodam tanto? Para equilibrar a minha caminhada, preciso do peso do relógio no pulso. Ao balcão, de costas para mim, havia uma pessoa loira de que eu somente conseguia ler a silhueta sombreada. Conversava com uma outra que estava do lado interno do balcão. Talvez essa pessoa fosse a proprietária, gerente, bartender. Pela luz do bar, não conseguia decifrar. Todas essas pessoas eram como gatos pardos. Recebi o cardápio e de nada gostei. Então, a gentil atendente chamou a chefe de cozinha, dona Zenaide. Ela me sugeriu uma pequena salada fria, a qual de fato estava saborosa.

- Você não é daqui, né? É novo? Está de passagem? Liga não, pois falo pelos cotovelos. Gostou do bar? Estamos começando.

- Não, não sou daqui. Estou a trabalho. Gostei bastante do bar, pois me lembra as propostas comerciais da Lapa...

- Nussinhora, Lapa, adoroooo... mas nunca fui.

A menina dos olhos de ardósia era muito cativante. Comerciante, né? Eu já estava no bar fazia um tempinho, e fechariam em meia hora. A cozinha já tinha encerrado. Além de mim, só havia um cliente: a pessoa loira. Nesse interim, fui chamado para acompanhar as duas pessoas que bebiam ao balcão. Certamente, a do interior não era só bartender. Ele era o dono e se chamava Jeremias. A pessoa loira foi me apresentada como Miranda. Todos muito receptivos. Batemos um breve papo de apresentação, e o dono pediu licença para começar a fechar o estabelecimento. Mas que ficássemos sossegados bebendo nossa cerveja. A questão era ninguém mais entrar.

- Você possui descendência portuguesa?

- Não, por quê? Sou descendente de puri, um grupo indígena da região. Meu avô é filho de puri. Talvez, minha avó seja neta de portuguesa. Somos todos da roça...

- Ah, não sabia. Legal. Perguntei mais por brincadeira, desculpa, é porque hoje mais cedo eu falava sobre o personagem Miranda do romance O cortiço, de Aluísio de Azevedo.

Comentário idiota o meu. Mas a pessoa parecia interessante para se tornar amiga... ou talvez. Falávamos sobre música, arte, política, família, trabalho e literatura. Drummond, Lispector, Cecília Meireles, Conceição Evaristo, Mia Couto, Carolina de Jesus... aliás, eu falava, Miranda ouvia atentamente. Pub fechado. Todos nos despedimos, me desejaram boas-vindas e até um próximo encontro. Embora estivesse há pouco tempo na pequena cidade do interior, eu estava conhecendo mais pessoas e bares do que os demais colegas de trabalho. E como sou da dinamicidade dos trânsitos, fiz amizade com pessoas de vários segmentos sociais. E, em cidade pequena, não é muito difícil deixar de ser notado pelos bares. Aliás, para essa passagem, escolho os versos de Toninho Geraes e Moacyr Luz: “Amigo eu nunca fiz bebendo leite, amigo eu não criei bebendo chá”. Talvez na maternidade, mas não durou muito.

Confesso que gostei do lugar e prometi que voltaria. Na verdade, a personalidade forte de Miranda tinha mexido com meu imaginário. Alguma área de minhas sensibilidades havia sido aguçada. Na semana seguinte, voltei ao bar. E Miranda não estava para minha decepção. Nessa segunda visita, a menina dos olhos de ardósia estava gerenciando. Cacô era o garçom da noite.

- Fala, doutor, do que você gosta de ouvir?

Cacô já sabia quem eu era. Esse vocativo me faz lembrar de outros bares por outras cidades desse Rio. Bate um pesado e gostoso saudosismo. Olhos de ardósia pergunta meu gosto musical.

- Pode colocar jazz ou samba. E aquela pessoa loira de semana passada... estava sentada aqui ao balcão...

Fingi não lembrar o nome. Olhos de ardósia pescou minha fala de forma exatamente maliciosa para uma esperta comerciante da vida.

- Travesti? Cindy Crawford? Miranda, pô! Gente boa, nunca foi presa à toa. Está na pista, mas não para atropelo. Aliás, na passarela porque eu sou dessas. Essa tal pessoa loira de quem fala é parente.

Tudo que olhos de ardósia dizia era entre risos e gargalhadas. Inegavelmente, começava a desejar encontrar Miranda pelos bares dessa cidade do interior. Queria conhecer melhor. Jogar conversa fora. Eu fiquei até o encerramento do bar, que fechou quase meia noite. Sei exatamente porque havia posto para consertar o meu relógio. Olhos de Ardósia iria beber umas cervejas em outro lugar e resolveu me convidar. Creio que por educação, mas, por falta de educação, aceitei. Ela, Élson, que estava de carro, e eu. Fomos para um bar chamado Fim de Noite. Fechado! Então nos encaminhamos para a rodoviária, último reduto de venda de cerveja. Para minha alegria, Miranda estava lá com um grupo pequeno de amigos.

Eu não sei como tudo começou, pois do todo não consigo recortar partes. Mas o primeiro beijo aconteceu após voltarmos da rodoviária. Fomos para praça onde fica o restaurante Don Corleone. Faltavam poucas horas para o relógio do dia despertar. Coincidentemente, nós dois deveríamos entrar no trabalho às 7h. Caminhando entre risos soltos, meio que sem querer, encostamos os dedos, que, ao leve esbarro, agarraram-se ao desejo das mãos esquerdas se abraçarem. Miranda era levemente maior do que eu, um pouco raquítico de paixões. Seus braços se enroscaram fortemente pelo meu corpo. Beijamo-nos, às escondidas, atrás de uma árvore. Tínhamos certa vergonha de sermos observados. Miranda confessa: 

- Naquela noite, no Sauer, fui eu quem pedi para minha amiga te chamar para sentar conosco. Gostei de você desde que te vi.

O silêncio imperava. Mas as batidas dos nossos corações tiquetaqueavam acelerados. Em cidade pequena e conservadora do interior, todo cuidado é pouco. Miranda e eu iniciamos o nosso amor. E assim foram os dias seguintes. Uma relação amorosa, porém um tanto que escondida, não bem assumida publicamente. Somente os nossos amigos e amigas de confiança é que tinham ciência da relação.

Não me apegarei aos detalhes, aos encontros, às viagens, ao amor. Residem na minha memória flashes de momentos maravilhosos. Tudo passou como um piscar de olhos. Será que foi verdade? As fotos que tenho guardadas em algum arquivo no computador seriam montagens? A atualidade tecnológica está tão absurda que tudo que vivemos pode ter sido um devaneio provocado por um aplicativo de celular. Creio que daí é que surjam os contos de fadas. É tudo tão rápido que sequer eles acontecem de verdade. Para que me serve o maldito relógio no pulso se ele não negocia com o tempo para não passar desapercebido? Eu volto os ponteiros, e nada é mudado. Não consigo voltar atrás para corrigir os erros. Relógio inútil!

Agora acabou. Mas como pode acabar uma vida que parece não ter existido?

Será que só tomamos a dimensão incomensurável daquilo que possuímos quando perdemos ou prestes a perder? Assim é com a morte. Meus pais estão vivos, e sou feliz por isso. E desejo que assim permaneçam por muitos anos, pois os amo. Contudo, a passagem é inevitável. Que sigamos a ordem natural da vida: que pais não enterrem ou cremem seus filhos.

Eu me senti violentado pela vida e acusado por incitá-la ao ato. “Qual é a sensação de se sentir usado e descartado?” Sem empatia, me pergunta a seringa na hora em que seu pico era compartilhado. Essa seringa desconhece o seu próprio interior e a trajetória dos seus antepassados. Se sou rejeitado hoje, está escrito no seu destino o mesmo.

A única certeza da vida é a permanente mudança. Como uma lagarta, Miranda havia se enclausurado no casulo para metamorfosear. Efeitos da quarentena. Seu verdadeiro âmago precisava ser externizado. Miranda não me amava mais. Estava vivendo uma outra fase de sua transformação, uma etapa em que eu não cabia. Ainda gostava de mim para permanecer enquanto o processo de metamorfose não fosse finalizado. Mas a etapa final é uma grande farsa no teatro da vida. Por amar Miranda, aceitei seu novo jeito de parecer, pois por dentro era a mesma pessoa que havia conhecido no bar. Foi por quem me apaixonei. Mas havia um empecilho. Eu queria ser, e Miranda também. Sua nova aparência de borboleta não condizia como o de uma mulher ensinada, desde pequena, ao destino da gravidez. Os seus hormônios anunciavam outro perfil físico. Para mim, por isso mesmo, Miranda estava mais radiante e linda do que nunca. Embora as mudanças internas e externas, o surgimento de uma criança poderia servir de laço a unir um amor apartado. O amor não se media pelas aparências, nem se abatia diante das convenções. Contudo, as individualidades não mais condiziam com as exigências padronizadas da sociedade. E foi isso que extirpou a união.

Aquele meu antigo relógio eu já havia dado de presente. O atual estava encostado na mesa, servindo apenas de souvenir. E nem me fazia falta ser infuncional. Eu gostava mesmo era da falsa sensação de controle que me causava à mente. Não preciso mais de relógios... de corda, de bateria ou parado. O tempo é um fluxo contínuo que não pode ser medido. Eu não quero mais essa relação em que sou fragmentado mecanicamente. Quero ser por inteiro agora no presente. A beleza da vida não deve ser cronometrada pela frieza de uma lâmina afiada. Hoje sei que, para viver uma vida social com saúde mental, é necessária mais uma pulseira vermelha e preta do que o automatismo mecânico.


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